A cultura colaborativa é cada vez mais uma constante na era digital, com consumidores de conteúdo se convertendo também em produtores dos mesmos. No mundo dos games não é diferente. Embora as grandes desenvolvedoras ainda detenham um domínio sobre a criação, o conceito de jogo produzido de “gamer pra gamer” é uma tendência – e não é de hoje.
Empresas consagradas como Ubisoft, Electronic Arts e Bethesda já entenderam esse movimento e incorporam elementos criativos dentro dos próprios jogos. Outras também colocam seus jogos em open source para incentivar modificações de todos os tipos. Em alguns casos, é até possível se beneficiar financeiramente dessas criações. Tudo isso faz parte de um movimento também conhecido como Cultura de Remix (que se aplica a todas as áreas do entretenimento), tema que tem como principal estudioso o norte-americano Lawrence Lessig.
Para entender melhor toda essa cultura colaborativa, é fundamental conhecer o significado da palavra mod. Abreviação de “modification”, o termo se popularizou na década de 90 e assim segue até hoje. Um mod nada mais é que uma alteração na programação de algum jogo de modo a fazê-lo funcionar de uma forma diferente ou proporcionar mudanças em relação ao jogo original – seja em personagens, cenário, itens, veículos, armas etc.
Doom: o “pai” dos mods
Considerado um dos pioneiros dos jogos de tiro (embora não tenha sido o primeiro), Doom também trouxe uma revolução ao mercado de jogos na década de 90 por se lançar como um jogo open source, ou seja, com código-fonte aberto. Dessa forma, a id Software, empresa criadora do FPS, tornou o game um verdadeiro “pai” dos mods: milhares de novos mapas criados por fãs foram surgindo e comunidades de criadores de fases também apareceram na internet.
A estratégia se mostrou um sucesso para a empresa, pois as vendas do jogo explodiram, abrindo terreno para o lançamento de outras sequências da franquia, que segue relevante até hoje – tanto em sua nova versão quanto na mais antigas. Outros jogos de tiro também passaram a adotar a mesma estratégia, como Quake.
Quando o mod supera o original
Os mods também tomaram conta do jogo e, no ano seguinte ao seu lançamento, surgiu o mais famoso deles: o Counter-Strike, que utilizava o motor de jogo de Half-Life mas fugia da temática de ficção científica, trazendo um embate entre terroristas e contraterroristas. Criado pelo vietnamita Minh Le e pelo norte-americano Jess Cliffe, o game fez um estrondoso sucesso e acabou sendo incorporado pela própria Valve, desenvolvedora de Half-Life – com ambos os criadores sendo contratados.
21 anos depois, Counter-Strike segue no topo dos jogos FPS, sobretudo pelo seu modo multiplayer que é o mais popular e que mais distribui premiações em dinheiro no universo dos eSports no gênero de tiro em sua mais recente versão, Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO).
Embora Half-Life seja um sucesso por si só, sendo relevante na comunidade gamer mesmo após mais de duas décadas de seu lançamento, não é absurdo falar que ele foi “superado” em termos de sucesso pelo seu mod.
Outro caso similar aconteceu com Defense of the Ancients (o popular “Dota”). O jogo também surgiu como um mod de Warcraft III: Reign of Chaos, game de estratégia em tempo real da Blizzard. Desenvolvido por uma série de colaboradores (ou “modders”, como são conhecidos na internet) a partir de 2003, a modificação fez tanto sucesso que também superou seu game de origem. Em 2009, a Valve comprou os direitos da franquia e posteriormente lançou a sequência Dota 2, que é o jogo que mais distribui prêmios nos eSports nos dias de hoje.
Outras empresas também abrem o olho
Com um movimento criativo tão grande, empresas consagradas do setor passaram a disponibilizar mecanismos de criação. É o caso da Bethesda, com a série The Elder Scrolls, e da Electronic Arts, com Battlefield (que teve títulos frutos de modificação bem sucedidos, como Desert Combat, Eve of Destruction e Forgotten Hope). A Ubisoft também implementou o sistema de criação de mapas em um de seus principais jogos, a série Far Cry, onde os próprios jogadores desenvolvem e disponibilizam mapas na comunidade do jogo.
Possibilidades de monetização
É o que acontece com The Sandbox Game, jogo que está em fase de lançamento pela Animoca Brands e traz um multiverso extremamente colaborativo, onde os próprios jogadores criam jogos, avatares e outros ativos que podem ser comercializados em criptomoeda por meio de um sistema blockchain. Muito similar ao Minecraft (que também é um reduto de mods), o game também aposta em personagens como Smurfs e Ursinhos Carinhosos para atrair ainda mais entusiastas.
O jogo traz a convergência entre a cultura colaborativa e as criptomoedas, algo que deve ser uma tendência na era digital nos próximos anos com uma valorização cada vez maior de criptoativos como Bitcoin e outros. No caso de The Sandbox Game, é o $SAND, token que já pode ser negociado em corretoras.
Controvérsias
Apesar do estrondoso sucesso no Brasil, a versão nunca foi reconhecida pela Konami. Em outras palavras, todas as versões do Bomba Patch foram comercializadas no mercado paralelo, o que faz do Winning Eleven um dos jogos mais pirateados em todos os tempos.
Embora a cultura colaborativa seja uma tendência, a questão dos direitos autorais ainda é uma das principais amarras no universo criativo em todas as esferas no mundo do entretenimento, e não seria diferente no universo gamer. Inúmeras controvérsias e até questões judiciais já foram criadas por uso indevido de propriedade intelectual, sobretudo nos casos em que os mods são comercializados.
Essa é uma discussão profunda, porém importante para trazer mais segurança jurídica aos criadores. A tendência é que haja mais luz sobre a questão nos próximos anos. Enquanto isso, as modificações vão surgindo aos montes, dia após dia. Quem ganha com isso é o próprio jogador, que no “fringir dos ovos”, é o consumidor final de um mercado multibilionário como o dos jogos – e que cada vez mais se converte, também, em criador.