Crítica | Guerra Fria

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 06 de fevereiro de 2019

Em sua célebre música Wave, Tom Jobim já dizia que “é impossível ser feliz sozinho”. Isso pode até ser verdade para muitos, mas não seria exagero afirmar também que a felicidade, como estado permanente, é simplesmente inalcançável. Afinal, sem ter acesso a quem amamos, podemos nos sentir assombrados por sua ausência.

Guerra Fria, o novo filme de Pawel Pawlikowski, é justamente sobre essa impossibilidade de ser feliz, ainda mais quando amamos. Esse amor, obviamente, não se resume ao romântico entre casais (apesar da trama centrar em um). O amor pode ser por uma comunidade, um conceito, um ideal… Tudo que serve de combustível para as mudanças estruturais de nossa sociedade. Pawlikowski consegue abordar o sentimento em sua totalidade, pois coloca a história de um casal dentro de um contexto político e social muito maior, criando um paralelo entre os dois cenários.

O filme começa no início da Guerra Fria, na década de 1950. Um compositor polonês talentoso conduz um espetáculo que exalta a cultura local, em meio a um regime autoritário stalinista. Ao sentir suas liberdades minadas, opta por se mudar para a capitalista França, mas não quer fazê-lo sozinho, pois se encontra apaixonado por uma artista da peça. Ao contrário dele, ela é bem adaptada à realidade do país, não tendo motivos maiores para acompanhá-lo. A partir daí, a trama se desenvolve mostrando as idas e vindas do casal entre os dois polos, tentando fazer a relação – ou simplesmente a própria vida – funcionar.

É incrível como, neste processo, o roteiro de Pawlikowski se mantém politica e filosoficamente cético, o que é refletido pela abordagem áspera dos eventos. Enquanto a moça não consegue ser feliz em meio aos excessos (e carências) que encontra na França, o rapaz simplesmente não pode voltar para a Polônia. Mas os dois se amam intensamente, fazendo com que tentem se unir nas condições menos favoráveis. Com isso, a felicidade se torna muito breve – quase escassa – mas só possível quando estão juntos, tentando fazer o momento durar. A mesma, porém, vem acompanhada de uma dor constante causada por suas falhas, além de um vazio existencial muito grande. Isso tudo é realçado pela direção, com uma sonoplastia opaca e uma fotografia preto e branco bem demarcada. Também é particularmente interessante como este último aspecto consegue desenhar em tela características fundamentais dos dois sistemas econômicos retratados. Enquanto a Polônia é toda coberta pela luz, sendo completamente clara e uniforme, a França tem um aspecto mais low key, com sombras profundas e contrastantes.

Aliás, o poder de síntese de Pawlikowski é notável, constantemente montando quadros que capturam muito mais do que a cena textualmente precisaria. Um destaque é o plano em que ele filma todo um salão de festa através de um espelho onde o protagonista está encostado. Esse tipo de construção torna a obra robusta, além de extremamente elegante e eficiente. É uma intensificação da abordagem vista em Ida (2014), seu filme anterior, que também lida com o vazio existencial e contém uma visão crua da vida. Assim, percebemos um senso de continuidade na obra do autor, que não se evidencia só pela fotografia em preto e branco e de aspect ratio acadêmico (1.37:1).

Além da evolução de um grande artista, temos a introdução de uma nova com a fenomenal atuação da – até então pouco conhecida – Joanna Kulig. No papel da complexa Zula (a protagonista do filme), ela conseguiu convencer como uma pessoa performática (cantando e dançando), misteriosa e autenticamente cínica, tornando a personagem extremamente interessante. O resto do elenco, principalmente Tomasz Kot (o protagonista), entrega boas performances, mas o show aqui é de Kulig. É um trabalho que deveria ter recebido mais atenção durante a temporada de premiações.

Felizmente, a Academia conseguiu reconhecer o longa em três categorias importantes (Filme Estrangeiro, Direção e Fotografia), mas Guerra Fria merecia muito mais destaque, já que é uma das melhores (se não a melhor) realizações de 2018. É um filme que, alegoricamente, consegue falar de temas relevantes sem fazer nenhuma concessão, além de esbanjar elegância, técnica e puro saber cinematográfico. Guerra Fria é o tipo de filme que faz o cinema valer a pena.

Crítica | Guerra Fria
O último filme de Pawel Pawlikowski alia uma técnica impecável a uma inteligente e envolvente história de amor, que diz muito mais do que aparenta.
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