Em sua célebre música Wave, Tom Jobim já dizia que “é impossível ser feliz sozinho”. Isso pode até ser verdade para muitos, mas não seria exagero afirmar também que a felicidade, como estado permanente, é simplesmente inalcançável. Afinal, sem ter acesso a quem amamos, podemos nos sentir assombrados por sua ausência.
Guerra Fria, o novo filme de Pawel Pawlikowski, é justamente sobre essa impossibilidade de ser feliz, ainda mais quando amamos. Esse amor, obviamente, não se resume ao romântico entre casais (apesar da trama centrar em um). O amor pode ser por uma comunidade, um conceito, um ideal… Tudo que serve de combustível para as mudanças estruturais de nossa sociedade. Pawlikowski consegue abordar o sentimento em sua totalidade, pois coloca a história de um casal dentro de um contexto político e social muito maior, criando um paralelo entre os dois cenários.
O filme começa no início da Guerra Fria, na década de 1950. Um compositor polonês talentoso conduz um espetáculo que exalta a cultura local, em meio a um regime autoritário stalinista. Ao sentir suas liberdades minadas, opta por se mudar para a capitalista França, mas não quer fazê-lo sozinho, pois se encontra apaixonado por uma artista da peça. Ao contrário dele, ela é bem adaptada à realidade do país, não tendo motivos maiores para acompanhá-lo. A partir daí, a trama se desenvolve mostrando as idas e vindas do casal entre os dois polos, tentando fazer a relação – ou simplesmente a própria vida – funcionar.
É incrível como, neste processo, o roteiro de Pawlikowski se mantém politica e filosoficamente cético, o que é refletido pela abordagem áspera dos eventos. Enquanto a moça não consegue ser feliz em meio aos excessos (e carências) que encontra na França, o rapaz simplesmente não pode voltar para a Polônia. Mas os dois se amam intensamente, fazendo com que tentem se unir nas condições menos favoráveis. Com isso, a felicidade se torna muito breve – quase escassa – mas só possível quando estão juntos, tentando fazer o momento durar. A mesma, porém, vem acompanhada de uma dor constante causada por suas falhas, além de um vazio existencial muito grande. Isso tudo é realçado pela direção, com uma sonoplastia opaca e uma fotografia preto e branco bem demarcada. Também é particularmente interessante como este último aspecto consegue desenhar em tela características fundamentais dos dois sistemas econômicos retratados. Enquanto a Polônia é toda coberta pela luz, sendo completamente clara e uniforme, a França tem um aspecto mais low key, com sombras profundas e contrastantes.
Aliás, o poder de síntese de Pawlikowski é notável, constantemente montando quadros que capturam muito mais do que a cena textualmente precisaria. Um destaque é o plano em que ele filma todo um salão de festa através de um espelho onde o protagonista está encostado. Esse tipo de construção torna a obra robusta, além de extremamente elegante e eficiente. É uma intensificação da abordagem vista em Ida (2014), seu filme anterior, que também lida com o vazio existencial e contém uma visão crua da vida. Assim, percebemos um senso de continuidade na obra do autor, que não se evidencia só pela fotografia em preto e branco e de aspect ratio acadêmico (1.37:1).
Além da evolução de um grande artista, temos a introdução de uma nova com a fenomenal atuação da – até então pouco conhecida – Joanna Kulig. No papel da complexa Zula (a protagonista do filme), ela conseguiu convencer como uma pessoa performática (cantando e dançando), misteriosa e autenticamente cínica, tornando a personagem extremamente interessante. O resto do elenco, principalmente Tomasz Kot (o protagonista), entrega boas performances, mas o show aqui é de Kulig. É um trabalho que deveria ter recebido mais atenção durante a temporada de premiações.
Felizmente, a Academia conseguiu reconhecer o longa em três categorias importantes (Filme Estrangeiro, Direção e Fotografia), mas Guerra Fria merecia muito mais destaque, já que é uma das melhores (se não a melhor) realizações de 2018. É um filme que, alegoricamente, consegue falar de temas relevantes sem fazer nenhuma concessão, além de esbanjar elegância, técnica e puro saber cinematográfico. Guerra Fria é o tipo de filme que faz o cinema valer a pena.