Crítica | No Portal da Eternidade

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 01 de fevereiro de 2019

Em 2007, o diretor Julian Schnabel nos trouxe para dentro da mente de Jean-Dominique Bauby na cinebiografia O Escafandro e a Borboleta. A maior parte do longa foi filmada com uma câmera subjetiva bem orgânica para mostrar a perspectiva do personagem, que estava preso no próprio corpo por conta de um AVC. Agora, mais de 10 anos depois, o diretor reutiliza o recurso em No Portal da Eternidade para nos mostrar um pouco da visão de Vincent Van Gogh, lendário pintor e eterno mártir do mundo das artes. A diferença é que, aqui, Schnabel não se limita tanto à câmera subjetiva, a fim de valorizar a atuação do grande Willem Dafoe. Considerando que o ator foi indicado ao Oscar pelo papel, parece que deu certo. A questão é: o filme consegue fazer mais do que servir de plataforma para premiações?

Em No Portal da Eternidade, há uma busca constante pelo olhar de Van Gogh. Afinal, o que ele via de tão especial no mundo? Não há uma resposta específica, mas Schnabel faz o que pode. Através de lentes diversas, que distorcem e colorem, e da câmera indiscreta e – por vezes – contemplativa de Benoît Delhomme, o diretor procura nos últimos anos de vida do pintor o mesmo que o próprio procurava no mundo ao realizar suas belas obras de arte. Ainda que saiamos da sessão com mais dúvidas do que certezas, há a sensação de que entendemos perfeitamente Vincent. O roteiro também é responsável por isso, fazendo questão de explicitar a lógica por trás de suas decisões, ainda que nem sempre seja tão aparente assim. Por outro lado, algumas linhas de diálogo soam demasiadamente expositivas, o que entrega um pouco da artificialidade do relato e o torna um pouco cansativo. Mas em nenhum momento o texto soa como algo além de um esforçado exercício de empatia.

Outros pontos que ajudam a trazer essa noção, além dos enquadramentos intimistas e movimentos de câmera orgânicos, é a música de Tatiana Lisovkaia e a montagem de Louise Kugelberg e do próprio Schnabel. O primeiro aspecto soma os privilégios e dores do artista, representados, respectivamente, por um piano passional e uma respiração ofegante – reproduzidos de acordo com o que cada momento pede. A montagem segue uma lógica parecida, por vezes deixando planos-sequência bem extensos (que servem para ostentar certos movimentos de câmera mais expressivos) e, em outros momentos, picotando e juntando um material bem variado, filmado de diferentes formas. No geral, tem muita câmera tremida e close-ups, além de uma quantidade considerável de inserções e fusões de imagens, utilizadas para refletir o estado de mente do protagonista.

O filme faz um bom trabalho ao retratar os surtos de Van Gogh: não ameniza seus efeitos, mas mostra uma visão de dentro para fora, como se a sociedade da época não estivesse adequada às suas demandas. A atuação de Dafoe consegue exprimir muito bem essa sensação, assim como evidencia sua compenetração nos momentos em que tenta trabalhar. Ele consegue injetar vida num personagem bastante caricaturado, e o esforço se encaixa perfeitamente na proposta. O elenco de apoio conta com alguns rostos conhecidos, como Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner e Rupert Friend, mas nenhum tem tempo de tela suficiente para causar uma grande impressão, com exceção, talvez, de Oscar Isaac. No papel de Paul Gauguin, ele participa de algumas cenas importantes para a afirmação de Van Gogh como autor, já que os dois têm boas discussões quanto aos seus divergentes estilos e pontos de vista. Isaac consegue passar bem a confiança, presunção e carisma do personagem, mas não o suficiente para disputar atenção com Dafoe.

Porém, ainda que a habilidade do ator seja inegável, a presença que se faz mais perceptível ao longo do filme é a de Schnabel, que demonstra uma sintonia muito grande com Van Gogh ao se preocupar com a integridade do relato do autor. Curiosamente, assim como o holandês, o cineasta também é pintor, e conhecido por não preparar seus quadros antes de filmá-los. Talvez por isso o trabalho pareça tão pessoal – quase rústico – e é justamente por isso que No Portal da Eternidade é muito mais do que uma cinebiografia com pretensão de ganhar alguns prêmios: é um autêntico retrato do papel do artista na sociedade e na própria existência.

Crítica | No Portal da Eternidade
No Portal da Eternidade é uma experiência visceral, proporcionada pela engenhosa direção de Julian Schnabel e uma atuação intensa de Willem Dafoe.
4

Compartilhe!