Crítica | O Tradutor

Escrito por: Pedro Henrique Figueira

em 29 de março de 2019

Em pleno final dos anos 80, Cuba viveu uma profunda crise social e política. O governo do líder Mikhail Gorbatchev começou a entrar em colapso, com Gorbatchev defendendo o liberalismo econômico na URSS como a única solução para os graves problemas econômicos e sociais. Dessa maneira, as reformas inseridas (chamadas perestroika e glasnost) tiveram o objetivo de traçar caminhos para mudanças estruturais na economia, mas funcionavam como uma crítica aberta ao regime soviético. Logo, o declínio do comunismo provocou uma crise financeira que atingiu toda a população, alterando a vida e rotina das famílias. E dentro disso, o país ainda precisou lidar com as consequências do acidente nuclear de Chernobyl, uma das maiores catástrofes mundiais. Nesse contexto sócio-político que acompanhamos a trama de O Tradutor.

Na realidade, tudo funciona como um pano de fundo para contar a história de Malin (Rodrigo Santoro): um professor de literatura russa, que é convocado para ajudar no trabalho de tradução com as vítimas do desastre nuclear. O personagem principal é inspirado no pai dos diretores Rodrigo e Sebastián Barriuso, dando ao filme um caráter biográfico e mais autenticidade para o que vemos em tela. Apesar dessa questão pessoal ser fundamental para a força do projeto, os irmãos utilizam da mesma sensibilidade para expor os sofrimentos vividos pelas crianças no hospital. Eles nos revelam que, além de uma história baseada em fatos reais, O Tradutor é um longa que fala sobre amor e empatia.

Sem a necessidade de se apressar na construção do enredo, a roteirista Lindsay Gossling sempre procura traçar um paralelo entre a história central e os acontecimentos em Cuba, ao mesmo tempo que desenvolve com precisão os fatos que amarram o professor ao contexto dramático das crianças. Existe uma compreensível relutância de Malin em se entregar de corpo e alma ao “novo trabalho”, já que ele é retirado obrigatoriamente de seu lugar de conforto para ser inserido em uma situação fora de seu campo profissional. Por esse motivo, o ritmo do filme é ditado perfeitamente de acordo com que a trama ganha intensidade, sem utilizar-se de artifícios forçados para sensibilizar o público. Na medida em que Malin passa por uma transformação emocional em sua vida, também sentimos genuinamente tudo que é apresentado, levando-nos por uma total imersão naquele terrível cenário social. Nesse caso, a sintonia da musicalidade, que alterna entre a tensão e melancolia, torna-se fundamental.

Aos poucos, o protagonista vai aprendendo a ajudar as crianças e se preocupando com elas, e vemos como isso influencia a sua rotina familiar, principalmente no que diz respeito à sua relação com a mulher Isona (Yoandra Suárez). É também na interação com o filho que reside a dificuldade de Malin em se relacionar com os pacientes. Assim, sem apontar dedos, o longa quer apenas nos mostrar diferentes perspectivas. No momento em que Isona expõe suas obras para as pessoas, ela se vê diante de algo que ainda não havia parado para prestar atenção, demonstrando o quanto precisamos ter um olhar sobre o outro. É uma excelente cena que não desmerece o trabalho artístico da personagem, somente reforça uma das mensagens propostas pelo roteiro.

Quando O Tradutor se concentra nas vítimas de Chernobyl, percebemos ainda mais a importância da direção de arte em criar o ambiente pesado e assustador que pairava sobre o hospital. Fica perceptível a atenção que os diretores tiveram em retratarem tudo da forma mais fiel possível. Ao decidirem pela câmera subjetiva em momentos-chave, somos colocados dentro daquele lugar, como se realmente estivéssemos vivenciando os acontecimentos. A coprodução cubana e canadense tem também uma ótima reconstrução de época, apresentando bem as mudanças que a cidade de Havana sofreu com a crise econômica. O projeto é rico em detalhes, trazendo elementos que completam a emocionante trajetória que Malin percorre.

Nada disso seria tão autêntico sem a total entrega do elenco, principalmente a de Rodrigo Santoro. O ator brasileiro está simplesmente excepcional em sua interpretação, mostrando uma dedicação enorme para o papel – inclusive, ele aprendeu russo em apenas um mês. Na primeira vez que Malin precisa traduzir a fala do médico, é impressionante a tamanha intensidade da atuação de Santoro, ao ponto de notarmos que sua boca treme ao ter que relatar um triste diagnóstico à mãe do paciente. As crianças foram bem escaladas e também merecem muitos elogios, com o necessário destaque ao excelente Nikita Semenov, que interpreta Alexi. Através de um olhar distante, em uma cena com a câmera em close-up e dando zoom no rosto dele, o ator mirim consegue nos fazer sentir todo o medo e desespero do personagem – um talento a se acompanhar. Maricel Álvarez (Gladys) também está incrível no papel da enfermeira que ajuda Malin, manifestando uma boa dinâmica com Santoro.

Nos créditos finais, ainda somos presenteados com fatos que concluem a comovente história. Assim, a sensação que o público leva é de ter assistido a um projeto feito com carinho, cuidado e sentimento. Os diretores Rodrigo e Sebastián Barriuso não só trouxeram uma linda experiência para se refletir, como também fizeram de O Tradutor um dos melhores dramas vistos no cinema. Uma obra que merece ser conferida.

Crítica | O Tradutor
Com bastante sensibilidade, os diretores Rodrigo e Sebastián Barriuso conseguem contar uma emocionante história sobre o próprio pai, fazendo paralelo com as vítimas do acidente nuclear de Chernobyl. A direção precisa, o excelente elenco e a intensidade dos fatos funcionam em sintonia perfeita, resultando em genuínos sentimentos do público. Destaque também para a atuação de Rodrigo Santoro, em um dos seus melhores papéis.
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