Crítica | Thor: Ragnarok

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 28 de outubro de 2017

Desde o início do Universo Cinematográfico da Marvel, o estúdio buscava o tom certo para os filmes solo do Thor. Nas duas primeiras tentativas, os realizadores não souberam se definir entre aventura cósmica e drama familiar medieval, entregando obras escapistas sem muita identidade. Com o Ragnarok (apocalipse da mitologia nórdica) sendo anunciado como título do terceiro segmento da franquia, muitos fãs tiveram a esperança de que finalmente veriam um Thor viking num épico de guerra à la Senhor dos Anéis, ou algo do tipo. Bom, felizmente eles se enganaram, porque dificilmente algo manjado assim teria dado tão certo quanto Thor: Ragnarok.

Ao invés de abraçar o lado tradicional do universo asgardiano (algo que os filmes anteriores não tiveram coragem de fazer), a Marvel escolheu olhar para o futuro, entregando a franquia nas mãos de um dos cineastas mais criativos em atuação: Taika Waititi. No processo, o estúdio não só se manteve fiel a sua essência (de obras irreverentes e divertidas), como abriu um empolgante precedente para os próximos lançamentos do subgênero (ou “gênero” , dependendo do seu olhar).

Fazia tempo que não via tanta autoria num filme de super-herói. Talvez os mais recentes que possam competir com Ragnarok nesse quesito sejam Homem de Ferro 3 (inquestionavelmente de Shane Black) e a trilogia Cavaleiro das Trevas (inquestionavelmente de Christopher Nolan). Mas nenhum foi tão ousado esteticamente quanto a terceira aventura do Deus do Trovão. Há elementos que eu nunca esperaria ver num blockbuster de ação atual, como os figurinos e cenários artificiais, típicos de uma ficção científica da década de 1980 ou um videoclipe dos anos 2000. Não é como se a Marvel não tivesse condições de bancar algo mais sofisticado (tanto que o longa também é repleto de bons efeitos especiais), mas a mistura dos diferentes estilos dá à obra um aspecto atemporal. É um filme do Thor, mas poderia tranquilamente ser uma aventura típica da sessão da tarde (no melhor sentido possível).

Muitos blockbusters e séries atuais tentam replicar o efeito e, apesar dos resultados serem normalmente positivos, nenhum tem tanta autenticidade quanto Thor: Ragnarok. Ao invés de ter referências explícitas à cultura oitentista no roteiro (como Guardiões da Galáxia), ele retoma a estética do cinema feito na época, recuperando sua magia. Isso está presente em todas as peças da obra, desde a trilha sonora techno psicodélica de Mark Motherbaugh até desenho de produção, que soma Jack Kirby a Star WarsStar TrekFlash Gordon e outras óperas espaciais.  Claro que os momentos que exigem efeitos mais modernos, como as sequências de ação, se adequam ao padrão atual, mas isso é compensado por soluções criativas do diretor. As características de cada personagem são exploradas ao máximo, tornando-os quase lutadores de um video game, com seus combos e habilidades especiais.  Por exemplo, o Thor é quase um Raiden, o Hulk é um tank, o Skurge é o… cara das metralhadoras e a Hela é… bom… uma pessoa que cria objetos afiados. Enfim, isso torna as lutas, se não “memoráveis”, ao menos divertidas. É como ver uma criança de 9 anos brincando com bonecos figuras de ação.

As interações entre os personagens também são muito pautadas em suas individualidades. Loki nunca mereceu tanto o título de “Deus da Trapaça”, enquanto o orgulho de Thor e a brutalidade de Hulk também estão constantemente presentes. Aliás, foram adicionados certos traços à personalidade do Gigante Esmeralda que o difere definitivamente de todas as outras encarnações vistas no cinema, e remetem mais aos primeiros quadrinhos do herói. Mark Ruffalo faz um excelente trabalho físico (como sempre), mas demonstra um timing para comédia que eu nunca soube que ele tinha. Ele está surpreendentemente hilário, tanto como Hulk, quanto como Bruce Banner. Chris Hemsworth, por outro lado, sempre se mostrou um ator de comédia muito melhor do que de drama, e aqui ele tem muito mais oportunidade para brilhar. Agora mais do que nunca, Thor pode tranquilamente ser o herói favorito de muita gente (ele nem perde espaço para o Loki).

Todos os outros integrantes do elenco também têm seus momentos de glória. Jeff Goldblum coloca todo o seu charme excêntrico em teste, Tessa Thompson torna Valquíria uma das figuras mais humanas presentes e Cate Blanchett se entrega completamente a uma personagem que seria esquecível se interpretada por uma atriz menos competente. Mas todos, sem exceção, estão suficientemente performáticos e afetados para cumprir a proposta de Waititi, que, aliás, está sensacional como Korg. A presença desse personagem no filme resume muito bem toda sua abordagem com relação a humor, ação, drama e cinema, no geral. Ele vê e expõe o ridículo nas situações que qualquer diretor tentaria tratar com o mínimo de seriedade. O mesmo pode ser visto em alguns de seus trabalhos anteriores, como A Incrível Aventura de Ricky Baker (2016) e O que Fazemos nas Sombras (2014), então quem acompanha o trabalho do cineasta vai reconhecer o seu estilo do início ao fim.

Os filmes da Marvel, na maior parte das vezes, contêm um alto teor cômico, mas as piadas nunca foram colocadas da mesma forma que em Ragnarok. Aqui, há um tempo para comédia muito particular de Waititi, nunca soando forçada ou estendida demais. O humor surge nos momentos mais inesperados, mas de maneira bem orgânica, inserido em contextos estabelecidos pela visão anárquica e iconoclasta do diretor. Em outras palavras, as situações cômicas fazem total sentido pela caracterização do universo criado e dos personagens, que vem sendo construída desde os tempos dos quadrinhos (ou muito antes, no caso dos deuses nórdicos). Isso evita o efeito “metralhadora de piadas” (mais notável em Doutor Estranho e Guardiões da Galáxia Vol. 2), em que as piadas não soam naturais. Não se engane: Thor: Ragnarok é assumidamente uma comédia. Só que, como todo grande filme, ele consegue ir além das convenções de seu gênero.

Há um diálogo interessante entre a trama e a situação política de diversos países no momento. Hela tem uma sede de poder insaciável e um saudosismo pelo que Asgard já foi (o maior imperialista dos Nove Reinos). É um diálogo claro com os movimentos nacionalistas nos Estados Unidos e na Europa, que, inclusive, já conseguiram eleger alguns representantes. Porém, o roteiro vê a fragilidade da causa e dá uma resposta perfeita, exaltando as populações ao invés de linhas imaginárias. Podemos dizer que é uma das produções mais políticas da Marvel (se não a mais). Parece que o estúdio aprendeu com os erros do passado (leia-se Homem-Formiga) e permitiu que o diretor mantivesse sua voz, apesar das pressões do mercado.

Essencialmente, Thor: Ragnarok é sobre revolução. Sua linguagem cinematográfica reflete o tema e marca um recomeço para todo o subgênero (ou “gênero”) de super-herói. Nele, estúdios têm a possibilidade de emprestar suas propriedades para autores criarem novos sentidos e constantemente renovarem as histórias desses personagens que tanto amamos. Afinal, o Ragnarok, tanto nos quadrinhos quanto na mitologia nórdica, representa isso: recomeços. O filme não vai agradar a todos – como qualquer obra que tenta fugir do padrão – mas há o suficiente nela para agradar a diferentes tipos de espectador. Quem quiser ver uma simples comédia, vai encontrar (uma hilária, inclusive), mas há diferentes camadas ali dispostas para fãs mais engajados e atentos ao novo.

Crítica | Thor: Ragnarok
Thor: Ragnarok representa um recomeço, não só para a franquia do Deus do Trovão, mas para todo o gênero de super-heróis, graças à visão anárquica e iconoclasta do diretor Taika Waititi.
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