Crítica | Todos Já Sabem

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 21 de fevereiro de 2019

Todos Já Sabem, o novo filme do premiado cineasta iraniano Asghar Farhadi, conta a história de uma família que, em meio a uma comemoração, é atingida por um evento terrível. Na resolução do problema, porém, os envolvidos são constantemente afetados por questões mal-resolvidas do passado. Nas mãos de outro diretor, essa premissa poderia pedir certas especificidades que tornariam a obra extremamente afetada, a fim de, supostamente, potencializar seus efeitos. Mas a abordagem de Farhadi rejeita artificialidades comuns a este tipo de drama, enfocando nos aspectos mais essenciais dos acontecimentos que aflingem os personagens.

Não que o diretor deixe de estar embebido do caráter conspiratório e melodramático comum às tragédias enquanto fenômeno sociocultural, mas ele está muito mais interessado em explorar isso com um certo distanciamento. A fotografia, a edição e o design de som pouco manipulativos refletem esse desejo, fazendo com que o drama se desenvolva por conta própria – ou melhor: pelo caráter de tudo que está em jogo, considerando o background dos personagens.

No primeiro ato, Farhadi estabelece todos muito bem, criando um intimismo entre eles e construindo um senso de comunidade no povoado em que o filme se passa. Com a introdução do problema, tudo isso é revirado aos poucos até gerar uma profunda desarmonia entre os indivíduos no centro da trama. O desenvolvimento se dá de forma gradual, convincente e discreta, apesar dos diálogos expositivos.

Sabemos que a quantidade e qualidade do que é dito não se aproxima tanto da vida real (Manchester à Beira-Mar, por exemplo, consegue capturar isso com mais proeza), mas o elenco profere as falas com tanta naturalidade, que mal percebemos isso (ao menos em boa parte do tempo). Os que mais se destacam, além dos protagonistas Javier Bardem e Penélope Cruz – que possuem material de sobra para ostentar seus talentos – são Bárbara Lennie e Ricardo Darín. Ambos fazem personagens misteriosos, que transmitem uma inquietação desconcertante através de suas presenças. Ela possui uma honestidade brutal na forma como fala, enquanto ele internaliza sentimentos muito fortes e nem sempre evidentes, sendo uma bomba-relógio ambulante.

Também vale adicionar que o polimento dos diálogos mais parecem parte da proposta do que um potencial equívoco. É evidente a intenção do cineasta de manter o fascínio, a beleza e um certo glamour dos melodramas e thrillers psicológicos que costumamos ver no cinema e na TV – ele só dá uma roupagem um pouco mais humana aos mesmos. Talvez seja justamente por isso que, até o segundo ato, o drama nos prenda tanto. Há determinados segmentos em que o espectador se encontra completamente absorvido pelo puro sofrimento humano colocado em tela. Toda a tensão, ansiedade e paranóia que os personagens experenciam são transmitidas para nós com eficácia, graças às atuações irretocáveis e ao tempo que o roteiro leva para construir todo o cenário antes de desabá-lo. Cada suspeita levantada passa a ser cogitável e a verdade nunca parece ser alcançável, se assemelhando às limitações da vida real. Isso torna o filme bastante imersivo – até não ser mais.

O mesmo cuidado que é empregado à apresentação dos personagens e à composição da atmosfera não é visto na revelação de certos segredos. Alguns fatos são jogados sem nenhum aviso prévio ou desenvolvimento, enquanto outros são dolorosamente previsíveis. Não há aquela satisfação que sentimos ao ir juntando as peças de um quebra-cabeça, revelando uma certa afobação do roteirista ao comunicar certos acontecimentos. Alguns poderiam cogitar que é proposital, no sentido de buscar desconstruir convenções de gênero. Ainda que fosse o caso, a opção não traz um senso de unidade à obra e, sim, de pontos fora da curva.

Uma das viradas óbvias pelo menos possui um certo grau de dubiedade, induzindo o espectador a refletir por algum tempo. O mistério, porém, é rapidamente arruinado quando é revelado demais de determinados núcleos da trama. Outra revelação que, de fato, é imprevisível, não nos soa tão importante graças à falta de investimento dado a ela desde o início. É quase como se o roteiro estivesse apresentando uma sub-trama, ao invés de estar apontando detalhes que já estavam à mostra, mas não tínhamos percebido. Por conta desses erros, à medida que nos aproximamos do final, o filme vai derrubando a nossa suspensão da realidade e vai se tornando cada vez mais enfadonho e menos crível.

Essas falhas, porém, não são suficientes para invalidar a obra como um todo. Todos Já Sabem não é perfeito, mas funciona incrivelmente bem durante boa parte do tempo, sendo altamente recomendável para quem busca altas emoções no cinema. Também é significativo por problematizar, sem julgamentos, questões banalizadas por nossa sociedade, como a privatização do afeto e de problemas que deveriam ser de interesse a todos.

Crítica | Todos Já Sabem
Todos Já Sabem prende o espectador como poucos filmes conseguem, mas começa a desandar depois do segundo ato. Ainda vale a ida ao cinema pelas excelentes atuações de Javier Bardem, Penélope Cruz, Bárbara Lennie e Ricardo Darín.
3.5

Compartilhe!