Crítica | O Rei

Escrito por: Jose Gabriel Fernandes

em 03 de novembro de 2019

Em sua primeira parceria com a Netflix, o diretor australiano David Michôd nos trouxe War Machine – uma sátira política morna, mas que coloca abertamente sua intenção: desmistificar as ações militares dos Estados Unidos no Oriente Médio. Por mais que não tenha tanto pulso ou originalidade – ficando bem distante de um Dr Strangelove ou um Apocalypse Now -, não deixa de mostrar o olhar crítico do autor sobre o tema. Em O Rei, seu segundo longa lançado pelo serviço de streaming, demonstra maior habilidade ao conduzir a história, mas se mostra um pouco menos rigoroso em sua visão anti-guerra, se entregando a alguns prazeres do gênero épico – ainda que para, ultimamente, subvertê-los.

A trama segue a trajetória do rei da Inglaterra Henrique V, aparentemente baseando-se na obra de Shakespeare sobre o personagem. Ele começa como um rebelde príncipe que rejeita os desmandos de seu pai, e termina como figura quase tão belicista quanto. Essa história, contada e recontada diversas vezes, através de diferentes figuras, sempre tem um gás para render novas releituras. Conflitos geracionais e histórias do tipo coming of age têm muito apelo, ainda mais quando o protagonista está na mão de Timothée Chalamet, um ator que transmite fisicamente as dores de crescimento como poucos (basta lembrar de Me Chame pelo Seu Nome e Querido Menino). Infelizmente, o roteiro de Michôd e Joel Edgerton (que também faz parte do elenco) parece pouco interessado nessa perspectiva mais humana, se focando num panorama maior, como se o garoto fosse a peça mais importante de um jogo de xadrez bruscamente construído. Como resultado, para avançar a trama, o menino acaba largando seus princípios após as menores provocações.

Objetivamente, isso acaba servindo à obra, pois tem muito para mostrar em pouco mais de duas horas de projeção. Por outro, porém, desperdiça a possibilidade de realizar um estudo de personagem profundo e relacionável. Fica difícil de entender as motivações do protagonista, uma vez que dependem de um alto grau de inocência que ele parecia não ter inicialmente. De qualquer forma, Chalamet faz o que pode, com uma atuação extremamente intensa e suficientemente contida. A naturalidade de suas expressões dão uma boa base para o linguajar arcaico (que até está maneirado aqui).

Mas, se o filme não está tão interessado na evolução (ou involução) do protagonista, no que estaria? Bom, seria, justamente, numa retratação realista daquela realidade. O primeiro embate entre cavaleiros, no primeiro ato, tem uma decupagem eficiente e distanciada, deixando a movimentação por parte dos próprios guerreiros. A coregrafia é convincente, considerando o peso das armaduras e as limitações para visão e respiração. O som das latarias se chocando soam mais alto do que qualquer composição que visa aumentar tensão – o que é positivo, pois expõe a fragilidade desses momentos, sem deixar de lado seu magnetismo. Até virem outras cenas similares, temos um conjunto de situações que aumentam a rivalidade entre Inglaterra e França, o que, como mencionado antes, não é desenvolvido da maneira mais estimulante, já que são pautadas na personalidade manipulável do rei e nas convicções de coadjuvantes unidimensionais. Muito é falado, mas pouco é propriamente sentido.

Apesar disso, a construção da Batalha de Agincourt – o clímax disso tudo – funciona bem por si só. Além de acompanharmos o raciocínio por trás da estratégia do exército inglês, a própria ação carrega os mesmos cuidados da outra luta, sendo levada ao chão enlameado, num caos completamente desgovernado. Ainda assim, Michôd não deixa de empregar um virtuosismo à situação, inaugurando-a um discurso inflamado de Henrique, acompanhado de uma trilha sonora inspiradora – sem falar no momento badass do protagonista em seu desfecho. Isso vai um pouco na contra-mão do que o filme parece querer transmitir no geral, o que é “corrigido” por um (previsível) plot-twist, nos 45 do segundo tempo, que esvazia bastante todo o pretenso heroísmo por trás de suas ações.

Talvez a ideia do diretor tenha sido incluir uma gama diversa de sentimentos presentes numa guerra – do orgulho nacionalista dos participantes à dissimulação por parte das classes dominantes -, mas parece muito mais uma necessidade de se adequar ao gênero do que uma opção consciente. Sendo assim, é um filme esteticamente contraditório – se é proposital ou não, fica a dúvida.

Provavelmente, o que sobra de mais positivo disso tudo são os vistosos cenários (de castelos a acampamentos) e a elegante fotografia de Adam Arkapaw, que, apesar de às vezes estacionar num cinzento digitalizado meio homogêneo, apresenta uma iluminação versátil e perfeitamente contemplável. Os momentos visualmente mais fascinantes são os que ostentam essa reconstituição de época, como a em que vemos um ataque de catapulta a um castelo, numa noite iluminada por fogo.

O elenco de apoio, apesar de não ter tanto destaque quanto Chalamet, também providencia bons momentos, especialmente Robert Pattinson, no papel de um príncipe francês. Sua cena de introdução está entre as mais engraçadas e surpreendentes do filme, graças à jocosidade do texto e a caracterização excêntrica de Pattinson. Joel Edgerton também se destaca no papel de Sir John Falstaff, principalmente numa cena onde é evidenciada ainda mais sua simplicidade e sabedoria. Funciona como uma figura paterna para Henrique V, mas, como o próprio protagonista, a relação entre os dois poderia ter sido melhor aproveitada. Quanto ao pai biológico, Henrique IV, este é naturalmente bem interpretado por Ben Mendelsohn, só que aparece pouco. Outros nomes, como Thomasin McKenzieSean Harris e Lily-Rose Depp mal conseguem marcar presença (no caso de Harris, mais pelo fato de seu personagem ser genérico do que por falta de tempo).

Com esse baixo aproveitamento dos personagens e um olhar inconsistente para o que está retratando, O Rei não faz tão bom proveito de sua excelência técnica. Dentro dos moldes do gênero, funciona perfeitamente, sendo recomendável para os apreciadores de épicos de guerra e filmes de época, mas a falta de personalidade para transcender essas barreiras é decepcionante. De qualquer forma, não deixa de ser uma adição interessante ao catálogo do serviço de streaming.

Crítica | O Rei
O Rei é bem produzido e repleto de qualidades, mas não parece definir muito bem o rumo que quer tomar. No meio termo entre abraçar e subverter o épico, acaba ficando sem muita identidade e entregando um estudo de personagem superficial (apesar do esforço de Timothée Chalamet).
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